Tamara Lorenzoni, mestre em Gestão de Marcas de Luxo pela Domus Academy Milano

O poder do acesso no mercado de luxo

As empresas de luxo que triunfarão serão aquelas capazes de desenhar múltiplas estruturas de acesso

Autora: Tamara Lorenzoni

No mercado de luxo atual, ter acesso exclusivo muitas vezes vale mais do que a própria posse de itens. Consumidores de alta renda valorizam a oportunidade de participar de experiências e comunidades seletas, entendendo o acesso privilegiado como símbolo de status. Marcas de luxo perceberam que oferecer acesso controlado e experiências únicas tornou-se essencial para criar valor e desejo. Como resultado, “luxo” não se refere apenas a produtos caros, mas também a convites VIP, listas de espera concorridas e clubes privados – o acesso em si virou moeda valiosa nesse setor. 

Este panorama explora como acesso, escassez planejada, exclusividade e pertencimento são usados estrategicamente pelas marcas, destacando tendências em segmentos diversos (moda, hotelaria, arte, automóveis, experiências) e mudanças no comportamento do consumidor de luxo, especialmente das novas gerações.

Mercado de luxo em números atualizados

O mercado global de luxo abrange tanto bens de luxo (ex: moda, joias) quanto experiências de luxo (viagens, gastronomia, hotéis, etc). Em 2024, as vendas de bens pessoais de luxo caíram cerca de 2%, para €363 bilhões, refletindo uma normalização após forte alta pós-pandemia. No entanto, o gasto total com luxo – incluindo experiências, hotéis e automóveis – atingiu cerca de €1,48 trilhão (um declínio modesto de 1% a 3% vs 2023). Segmentos como carros de luxo, hotéis cinco-estrelas e gastronomia lideram o mercado e respondem por grande parte desse valor. Enquanto bens de luxo tradicionais enfrentaram um leve recuo, as experiências de luxo mostraram crescimento acima da média, impulsionadas pela retomada do turismo e eventos sociais. 

De fato, pesquisas Bain indicam uma tendência contínua de preferência por ofertas “experienciais” em vez de bens tangíveis de luxo. Hospedagem de alto padrão, cruzeiros intimistas, jatos e iates privados tiveram forte demanda com a volta das viagens, evidenciando que vivenciar o luxo tornou-se tão importante quanto possuí-lo.

Experiências vs. posse: mudança de paradigma

Os dados confirmam que os consumidores de luxo estão priorizando experiências memoráveis sobre produtos. Um estudo da Euromonitor resume: “Experience is king”, pois clientes dispostos a pagar prêmios por encontros únicos impulsionam o crescimento do luxo experiencial. Especialmente millennials e a Geração Z demonstram preferência clara por experiências: 78% dos millennials afirmam que gastariam mais com uma experiência desejável do que com um item material. Essa mudança cultural fez com que o setor de luxo investisse em viagens exclusivas, alta gastronomia, arte e entretenimento. Após a pandemia, houve forte inclinação dos consumidores a buscar lembranças marcantes – seja uma estadia em resort seis-estrelas ou ingressos VIP para eventos de arte – fomentando um crescimento robusto do chamado “luxo experiencial”

Marcas reconhecem que oferecer acesso a experiências raras e “insta-worthy” aumenta a conexão emocional com o cliente e gera publicidade orgânica. Em resumo, a vivência do luxo ganhou primazia sobre a simples posse, especialmente para os mais jovens que valorizam histórias para contar tanto quanto objetos para exibir.

Interior de uma feira de arte internacional (Art Basel). Experiências e eventos exclusivos – como pré-estreias VIP em feiras de arte – tornaram-se parte central do luxo moderno, valorizando o acesso privilegiado e a vivência cultural acima da posse de objetos.

Estratégias de exclusividade e escassez planejada

Marcas de luxo cultivam o desejo tornando o acesso difícil e restrito. Uma estratégia clássica é a escassez planejada: produzir deliberadamente poucas unidades ou limitar quem pode comprar. Isso mantém produtos “hiper-desejados” e confere status a quem consegue obtê-los. Por exemplo, a Hermès ficou famosa por listas de espera (hoje não oficiais) para suas bolsas Birkin e Kelly, alimentando a aura de raridade. Na indústria automotiva, a Ferrari elevou esse conceito ao extremo – certos modelos de edição limitada só podem ser comprados sob convite direto da marca. Como afirmou um porta-voz da Ferrari, esses exemplares “são oferecidos apenas aos clientes mais leais e apaixonados, com longa relação com a marca”. Ou seja, ter histórico e pertencimento à “família” Ferrari vale mais do que dinheiro quando se trata de acesso a um carro exclusivo.

Na moda, vemos movimento similar: a Chanel, visando proteger a exclusividade, impôs limites de compra e aumentos agressivos de preço em suas bolsas icônicas. A marca passou a limitar clientes a comprar no máximo uma ou duas bolsas Classic Flap por ano, uma medida para conter revendedores e manter a aura de elite. Porém adicionou um tempero a mais, aumentando vertiginosamente os preços das bolsas, o resultado? As vendas da maison foram afetadas negativamente nesse último trimestre. 

Analistas apontam que a Chanel, assim como outras grifes, buscou tornar-se ainda mais exclusiva – tanto que algumas bolsas hoje custam o dobro do preço de 2019 após reajustes sucessivos. Essa estratégia de “quota”reforça a ideia de que nem todos podem ter, valorizando assim quem tem acesso mas os preços crescentes, não forma vistos bons olhos. Em suma, do ateliê de alta-costura à concessionária de supercarros, a escassez intencional e o acesso controlado são ferramentas centrais para criar desejo e valor no mercado de luxo.

Acesso como experiência e pertencimento

No luxo contemporâneo, vender um produto não basta – é preciso inserir o cliente em um círculo privilegiado. Marcas investem em comunidades fechadas, clubes e experiências VIP que fazem o consumidor sentir que ganhou um “passe” para um mundo restrito. “O varejo de luxo não se resume mais a vender produtos; trata-se de conectar-se a comunidades por meio de interesses compartilhados e oferecer experiências únicas”, diz reportagem da Vogue Business. Um exemplo emblemático é o Harrods Residence em Xangai, clube privado lançado pela tradicional loja britânica. Com apenas 250 membros (mediante convite e pagando até ¥250 mil anuais), o clube dá acesso a jantares com chefs estrelados, uísques raros e serviços sob medida, tudo em ambiente suntuoso de palacete histórico. O objetivo, segundo executivos, é criar “uma comunidade de indivíduos de mesmo perfil”, onde o espaço serve como “uma casa longe de casa” para membros se encontrarem e se inspirarem mutuamente. Ou seja, o valor está em pertencer a um clube seleto, não apenas consumir seus serviços.

Marcas de moda e varejo de luxo também lançam programas VIP e eventos fechados. Clientes VICs (“Very Important Clients”) são agraciados com pré-visualizações exclusivas de coleções e convites para eventos em loja, algo preferido por 80% desses consumidores de topo. Experiências sob medida que “o dinheiro não pode comprar” viraram tendência para encantar esses clientes: por exemplo, a boutique online Mytheresa levou convidados VIP para um jantar íntimo com o designer Brunello Cucinelli em sua propriedade na Umbria – uma noite privativa com celebridades que deixou nos presentes o sentimento de fazer parte de um círculo íntimo exclusivo

Da mesma forma, a Rolls-Royce criou o app exclusivo Whispers para proprietários, oferecendo acesso a experiências extraordinárias (de expedições na Antártida a projetar um autódromo particular), compartilhadas apenas entre membros dessa comunidade ultra-seleta. Esses exemplos mostram como marcas entregam pertencimento e status através do acesso privilegiado: o cliente vivencia momentos únicos, fortalece sua ligação emocional com a marca e sente-se parte de algo raríssimo – um sentimento de “só nós temos”.

Novas gerações e a redefinição de luxo

A ascensão dos millennials e da Geração Z – que em conjunto poderão representar cerca de 75–85% do consumo de luxo em 2030– está forçando mudanças profundas na forma como o luxo é oferecido. Essas gerações trazem valores e comportamentos distintos: autenticidade, sustentabilidade, inclusão e imediatismo são prioridades. Como destaca Claudia D’Arpizio (Bain & Co), as marcas hoje buscam manter a aura de exclusividade ao mesmo tempo em que se tornam mais acessíveis e alinhadas aos valores em evolução dos consumidores – saindo de um luxo apenas “aspiracional” para um luxo também “inspiracional”. 

Para os jovens, não basta um logotipo famoso; eles querem saber se a empresa tem propósito, se o produto foi feito de forma ética e sustentável, e esperam diálogo aberto nas redes sociais. “Sustentabilidade, origem ética e inclusão tornaram-se fatores essenciais, especialmente para os consumidores mais jovens orientados por valores” afirma D’Arpizio. Assim, marcas que antes eram templos de exclusividade têm adaptado sua comunicação e experiências para incluir narrativas autênticas e acolhedoras, sem diluir seu prestígio.

Outra mudança é a relação diferente com a propriedade. Muitos jovens consumidores veem a posse de bens de luxo de forma menos fetichizada – eles valorizam mais o uso e o acesso flexível. Isso explica, por exemplo, o boom do mercado de segunda mão e aluguel de luxo. Itens vintage ou usados de grife tornaram-se cool, sustentáveis e às vezes a única forma “acessível” de entrar no mundo do luxo. Em 2023, o mercado secundário de luxo atingiu US$ 47 bilhões, crescimento meteórico segundo a Bain. Gerações novas lideram essa demanda por produtos de segunda mão, buscando pechinchas em bolsas e relógios raros sem desprezar a exclusividade – afinal, uma peça esgotada é exclusiva mesmo que comprada usada. 

Relatório do Valor Econômico reforça que o mercado de luxo de segunda mão está ganhando tração, impulsionado pela preocupação com sustentabilidade, expansão do e-commerce de luxo e a busca por peças exclusivas a preços mais acessíveis. Em paralelo, surgem plataformas de aluguel de bolsas e roupas de grife, permitindo ao público desfrutar de itens caros por um período sem comprá-los – novamente, acesso em vez de posse.

Importante notar que a experiência digital nativa dessas gerações também molda o luxo: eles esperam instantaneidade e personalização. Crescidos no mundo do streaming e das redes sociais, jovens desejam drops limitados anunciados no Instagram, compras online VIP, e até itens virtuais de luxo (skins, NFTs) como parte da experiência. Marcas investem em realidade virtual, eventos transmitidos ao vivo e colecionáveis digitais para atender a essa busca por novidade e acesso imediato. Tudo isso reflete um consumidor que não “venera” as grifes de longe, mas quer interagir, cocriar e entrar nos bastidores. 

As empresas de luxo que triunfarão serão aquelas capazes de desenhar estruturas de acesso múltiplas – desde produtos de entrada mais acessíveis (ex: cosméticos de luxo) até clubes fidelidade gamificados – sem perder a magia aspiracional que atrai os mais ricos. Como resume a Deloitte Digital, o luxo atual vai “além da exclusividade – trata-se de momentos únicos e personalizados que criam conexão emocional duradoura”. Em outras palavras, o luxo se expande para envolver o cliente em 360 graus, antes, durante e após a compra, fazendo do acesso contínuo a verdadeira riqueza oferecida.

No dinâmico mercado de luxo do século XXI, posse e acesso se entrelaçam para definir valor. Ter um Rolex ou uma bolsa Chanel continua sendo cobiçado, mas estar entre os poucos com acesso a algo – seja um evento, um serviço ou uma edição limitada – tornou-se o ápice do prestígio. Marcas de luxo dominam esse jogo explorando a psicologia da exclusividade: controlam rigorosamente quem pode comprar, quando e em que quantidade, cultivando a sensação de privilégio. Ao mesmo tempo, ampliam o leque de experiências para manter relevância junto às novas gerações, que demandam mais do que produtos: querem propósito, engajamento digital e momentos memoráveis. Estratégias como escassez planejada, memberships, eventos VIP, colaborações especiais e iniciativas sustentáveis são agora parte integrante do ferramental de luxo.

Em última análise, “luxo” hoje é tão sobre pertencer quanto sobre possuir. O sentimento de pertencer a um grupo exclusivo – seja dos proprietários de um hipercarro, dos convidados de um baile de gala da Art Basel, ou dos membros de um clube privado em Shanghai – é algo pelo qual consumidores endinheirados estão dispostos a pagar generosamente. Nesse contexto, o acesso é poder: define quem faz parte da história da marca e quem fica de fora. Para as marcas, isso se traduz em lealdade e desejo insaciável; para os clientes, em status social e satisfação emocional. 

Como mostram os estudos recentes da Bain, BCG, McKinsey, Deloitte, entre outros, o futuro do luxo pertencerá às marcas que equilibrarem magistralmente inclusão aspiracional com exclusividade autêntica, entregando não apenas produtos impecáveis, mas também portais para um estilo de vida privilegiado. Em um mundo onde tudo pode ser compartilhado instantaneamente, o que permanece verdadeiramente raro é a experiência exclusiva – e é exatamente isso que continuará a definir o mercado de luxo.

Tamara Lorenzoni é mestre em gestão de marcas de luxo pela Domus Academy Milano.

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